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sexta-feira, 30 de maio de 2014

A serviço do nazismo

Livro conta como as mulheres abraçaram a causa e exterminaram judeus na II Guerra Mundial

Por::RENATO GRANDELLE 


RIO - Liesel Wilhaus era a ambiciosa filha de um comerciante de Saarland, no Sudoeste da Alemanha. Em 1942, ela finalmente teve a oportunidade de deixar a classe trabalhadora. Seu marido, Gustav Wilhaus, assumiu o comando do campo de concentração de Janowska, na Polônia. Liesel ocupou-se em reformar o casarão onde foram morar. Na varanda recém-construída no segundo andar, começou a praticar um “esporte”: testava sua pontaria com um rifle, matando os judeus que passavam pelo quintal. A filha Heike, ainda criança, era sua maior admiradora. Liesel é só um exemplo de um capítulo ainda pouco estudado da História do nazismo: a participação das mulheres no regime de Hitler.
Testemunhas, cúmplices e assassinas eram regidas pela mesma ideologia. Deveriam aceitar a superioridade masculina, manifestar devoção cega e pôr o corpo à disposição do Reich. O direito delas ao voto foi cassado ainda em 1933, ano em que Hitler chegou ao poder, mas não houve qualquer protesto — o inimigo não era o novo governo, mas a ameaça de que uma suposta igualdade entre homens e mulheres levasse ao bolchevismo.
 

O movimento nazista iria “emancipar a mulher da emancipação feminina” — descreve a historiadora americana Wendy Lower, consultora do Memorial do Holocausto dos EUA e autora do livro “As mulheres do nazismo” (Ed. Rocco), que será lançado na semana que vem. — A propaganda se destinava a trazer de volta as mulheres aos domínios privados de Kinder, Kücher e Kirche, ou seja, crianças, cozinha e igreja.
A formação escolar foi obscurecida em nome de outras prioridades. O treinamento físico da Liga de Meninas, que incluía marchas e exercícios de tiro, eram mais importantes do que disciplinas tradicionais. Os livros foram trocados por panfletos sobre como escolher um marido. A primeira pergunta ao possível parceiro era “Qual é a sua origem racial?”.
A maior contribuição feminina ao Reich era a maternidade. Hitler chegou a declarar que a mãe de seis filhos era mais importante do que uma advogada.

— Nunca antes as mães alemãs tiveram tamanho reconhecimento e status de celebridades, em cerimônias em que mães de mais de quatro filhos eram agraciadas com a Cruz de Honra — lembra Wendy, referindo-se a uma das maiores condecorações do país.
A reprodução, porém, tinha suas ressalvas. As mulheres não podiam se casar com judeus, nem criar filhos com alguma doença considerada genética. Neste caso, eram pressionadas a entregar os filhos a supostas clínicas pediátricas, onde eram mortos. Este foi o destino de pelo menos 8 mil crianças na Alemanha e na Áustria.
Reféns das parteiras
Entre as profissões de maior expansão na época estavam as de parteira e de cuidadora de crianças. Ambas tinham grande poder sobre as mães. Denunciavam o nascimento de bebês de raça não ariana — o que poderia levar à esterilização da mulher — e, baseadas em árvores genealógicas, nas feições faciais e no formato da cabeça, identificavam crianças “sub-humanas”.

— Namorar um judeu ou um cigano significava contribuir para a degeneração da raça ariana — explica Estevão Martins, professor do Departamento de História e Relações Internacionais da UnB. — Era uma falha tão grande que a mulher era obrigada a passar por um programa de doutrinação.
Com a partida dos soldados para o front, a maquinaria burocrática foi assumida pelas mulheres. Secretárias e datilógrafas passavam ordens de oficiais às linhas de frente da batalha, contribuindo indiretamente para o desempenho alemão na guerra e para o Holocausto. Outras, atraídas pela imponência do uniforme militar e por um salário relativamente generoso, assumiram modestas funções nos campos de concentração — até o fim da guerra, as posições de comando sempre foram exercidas por homens.
Uma das mulheres que mais se dedicaram à matança de judeus foi Johanna Altvaver, de 22 anos, que trabalhou entre 1941 e 1943 em um gueto próximo à cidade de Volodymyr-Volynsky, na fronteira da Ucrânia com a Polônia. Seu alvo preferido eram as crianças. Altvaver costumava atraí-las com doces. Quando elas se aproximavam, a alemã atirava na boca da criança com sua pistola de prata.
Em um rompante de raiva, invadiu o prédio que servia de hospital do gueto e, no terceiro andar, onde funcionava a enfermaria infantil, atirou diversas crianças da sacada. Aquelas que sobreviveram à queda foram levadas para um caminhão e, dali, teriam sido jogadas em valas comuns na periferia da cidade.
Natural de Hamburgo, Vera Wohlauf não precisou vestir uma farda para extravasar seu sadismo. Seu marido, Julius Wohlauf, oficial da SS, o serviço secreto alemão, foi escalado para comandar, entre 25 e 26 de agosto de 1942, a deportação de 11 mil judeus do gueto polonês de Miedzyrzec-Podlaski. Vera, que estaria grávida, deveria contentar-se em assistir ao massacre. Em vez disso, surpreendeu os outros militares ao circular entre os judeus e chicoteá-los. Depois, quando a perguntaram sobre a morte de quase mil pessoas, ela descreveu o episódio como um “assentamento pacífico, quase idílico para um campo de trabalho do Leste”.
Longe da burocracia e dos guetos, poucas figuras femininas se destacaram no nazismo. A última secretária pessoal de Hitler, Traudl Junge, escreveu sua autobiografia em 2002, em que alegou desconhecer as barbaridades idealizadas pelo líder nazista.
O relacionamento de Hitler com sua amante, Eva Braun, é enigmático. Eles nunca foram vistos juntos em público e o povo alemão só soube do caso anos após a morte dos dois.
Para Ana Maria Dietrich, autora do livro “Caça às suásticas” (Ed. Imprensa Oficial), a liderança do Führer provocou a admiração de outras mulheres.

— Acredito que a figura de Hitler possa ter sido sensualizada pelas mulheres — avalia. — Até hoje mistérios como a sua relação com Eva Braun ajudam a manter esse interesse feminino pelo Führer.
As mulheres do escombro
Após a guerra, a maioria das mulheres envolvidas com o Reich reconstruiu tranquilamente as suas vidas. Os tribunais de desnazificação — que investigavam os crimes cometidos durante a ditadura de Hitler — concluíram que as mulheres, por ocuparem cargos de baixo escalão na burocracia estatal, não eram uma ameaça à sociedade alemã. De fato, a “mulher do escombro”, aquela que varre as cidades destruídas, tornou-se o símbolo da reconstrução do país. Elas recuperaram seu direito de votar em 1949.

— A Alemanha estava de joelhos, sem horizonte diante de uma ideologia fracassada — conta Martins. — A luta pela sobrevivência era permanentemente renovada. Todos deveriam trabalhar, reconstruir a partir das ruínas.

— O suporte da mulher a feridos e prisioneiros na guerra mostrou como ela não deveria se restringir ao lar 

— ressalta Ana Maria.
As alemãs que passaram pelos tribunais eram julgadas quase aleatoriamente. Dependendo de sua reação às acusações, poderiam ser chamadas de monstruosas ou inocentes. Muitas que fugiram da Alemanha foram forçadas a voltar ao país, mesmo já idosas. Outras envolvidas diretamente com os crimes escaparam porque mesmo o Judiciário estava repleto de ex-nazistas. Foi o ponto final de uma era caótica em que as mulheres foram convencidas de que até a maternidade deveria estar sob a égide do Estado.


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